quarta-feira, 30 de março de 2022

Lonely is the nigth


 Para Ti


Foi para ti 
que desfolhei a chuva 
para ti soltei o perfume da terra 
toquei no nada 
e para ti foi tudo 

Para ti criei todas as palavras 
e todas me faltaram 
no minuto em que talhei 
o sabor do sempre 

Para ti dei voz 
às minhas mãos 
abri os gomos do tempo 
assaltei o mundo 
e pensei que tudo estava em nós 
nesse doce engano 
de tudo sermos donos 
sem nada termos 
simplesmente porque era de noite 
e não dormíamos 
eu descia em teu peito 
para me procurar 
e antes que a escuridão 
nos cingisse a cintura 
ficávamos nos olhos 
vivendo de um só 
amando de uma só vida 

Mia Couto, in "Raiz de Orvalho e Outros Poemas"

segunda-feira, 28 de março de 2022

Onde foi parar minha Vida ?

(Martha Medeiros)

Procuro embaixo do tapete, dentro do açucareiro... cadê? Ainda ontem ela estava aqui, diante dos meus olhos, anotada nas páginas da agenda, o passo a passo dos meus dias, com horários regulados, almoço e jantar, reuniões de trabalho, namorado no fim de semana.

 “Ainda ontem” é vício de linguagem. Não faz tão pouco tempo assim, já que entrementes houve uma pandemia que nos paralisou por dois anos, e quando ela começava a ser controlada, veio essa guerra que alterou os batimentos cardíacos de todos, então não foi ainda ontem que eu tive uma vida medianamente organizada, mas lembro bem dela, não pode estar tão longe. Atrás da geladeira, esquecida na garagem... cadê? 

 Todas as lives começavam com a mesma pergunta: qual será o legado dessa crise, como vai ser quando o vírus deixar de ser uma ameaça, que pessoas nos tornaremos depois dessa experiência? Ah, seremos mais solidários, levaremos em conta o coletivo, teremos mais consciência da nossa fragilidade, inventaremos novas profissões para impulsionar a economia, tudo vai mudar, nada vai mudar. Foi chute para tudo que é lado e ainda aguardo as confirmações dos prognósticos. De certo, mesmo, é que a vida que eu tinha aproveitou que eu estava distraída com o rebuliço do mundo e picou a mula. 

 Restou essa desatinada buscando a si mesma. Na gaveta do banheiro... será?

 Olha eu ali no posto abastecendo o carro para dirigir 800 km, sem medo do cansaço ou do preço da gasolina. Olha eu em frente ao computador pesquisando uma passagem barata para voar até um país caro (Paris e Londres não pareciam tão distantes). Olha como eu dormia mais de cinco horas por noite e tinha cinco quilos menos: lembranças enviadas pelo Facebook, tentando me convencer que aquela continua sendo eu mesma (coitado, até ele ficou no passado).  

 Nos álbuns de fotografias, escondida nas páginas de um livro... onde ela se esconde de mim, a vida que era minha e que não sei onde foi parar?

 Mas parou. É fato. Paralisou no sinal vermelho e o motor apagou. Alguns veículos passam por mim em baixa velocidade e gritam pela janela que estou atrapalhando o tráfego. Outros estão apagados também, ao meu lado, aguardando reboque. Parei, paramos. Você não? 

 Pode ser apenas um longo agora, reflexão necessária sobre este vácuo entre o que fomos e o que seremos. No fundo é a mesma vida, ainda que pareça vida nenhuma. Talvez tenhamos alcançado o tão desejado “depois da pandemia”, mas não consigo retomar do mesmo ponto onde parei, nem realizar um novo parto de mim mesma, desaprendi a partir e acho tudo bem estranho: sério que usei a palavra entrementes nesse texto? Vou continuar procurando, a vida de antes deve estar em algum lugar.



quarta-feira, 23 de março de 2022

Os mais perigosos inimigos não são aqueles que te odiaram desde sempre. Quem mais deves temer são os que, durante um tempo, estiveram próximos e por ti se sentiram fascinados.

____Mia Couto
 

domingo, 20 de março de 2022

Diz o meu nome ...

 

Diz o meu nome 

pronuncia-o 

como se as sílabas te queimassem 

os lábios 

sopra-o com a suavidade 

de uma confidência 

para que o escuro apeteça 

para que se desatem os teus cabelos 

para que aconteça


Porque eu cresço para ti 

sou eu dentro de ti 

que bebe a última gota 

e te conduzo a um lugar 

sem tempo nem contorno


Porque apenas para os teus olhos 

sou gesto e cor 

e dentro de ti 

me recolho ferido 

exausto dos combates 

em que a mim próprio me venci


Porque a minha mão infatigável 

procura o interior e o avesso 

da aparência 

porque o tempo em que vivo 

morre de ser ontem 

e é urgente inventar 

outra maneira de navegar 

outro rumo outro pulsar 

para dar esperança aos portos 

que aguardam pensativos


No húmido centro da noite 

diz o meu nome 

como se eu te fosse estranho 

como se fosse intruso 

para que eu mesmo me desconheça 

e me


sobressalte 

quando suavemente 

pronunciares o meu nome.

~Mia Couto~~


O silêncio não é a ausência da fala, é o dizer-se tudo sem nenhuma palavra. ________Mia Couto

quinta-feira, 17 de março de 2022

 Primeiro, 

nenhum sentimento me doía.

Depois, 

fui sentindo a dor.


Agora,

dói-me sentir.

Ser novo

é estar longe de tudo

é tocar o que se sonha.


Ter idades

é estar perto de tudo

e não tocar

senão esse turvo espelho: saudades.


["A dor e o tempo", Mia Couto]





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quarta-feira, 2 de março de 2022

E isso é tudo !!!

 O VALIOSO TEMPO DOS MADUROS

Contei meus anos e descobri que terei menos tempo para viver daqui para a frente do que já vivi até agora.

Tenho muito mais passado do que futuro.

Sinto-me como aquele menino que recebeu uma bacia de cerejas.

As primeiras, ele chupou displicente, mas percebendo que faltam poucas, rói o caroço.

Já não tenho tempo para lidar com mediocridades.

Não quero estar em reuniões onde desfilam egos inflamados.

Inquieto-me com invejosos tentando destruir quem eles admiram, cobiçando seus lugares, talentos e sorte.

Já não tenho tempo para conversas intermináveis, para discutir assuntos inúteis sobre vidas alheias que nem fazem parte da minha.

Já não tenho tempo para administrar melindres de pessoas, que apesar da idade cronológica, são imaturos.

Detesto fazer acareação de desafetos que brigaram pelo majestoso cargo de secretário-geral do coral.

As pessoas não debatem conteúdos, apenas os rótulos'.

Meu tempo tornou-se escasso para debater rótulos, quero a essência, minha alma tem pressa...

Sem muitas cerejas na bacia, quero viver ao lado de gente humana, muito humana; que sabe rir de seus tropeços, não se encanta com triunfos, não se considera eleita antes da hora, não foge de sua mortalidade,

Caminhar perto de coisas e pessoas de verdade,

O essencial faz a vida valer a pena.

E para mim, basta o essencial!


Mario de Andrade (1893 - 1945)